Teve um tempo em que as ruas de Fortaleza exibiam orgulhosas as cicatrizes do progresso que a chegada dos bondes trouxera. Um tempo em que o Brasil sedimentava seu lugar entre as nações como celeiro de matérias primas. Um tempo em que os brasileiros, conectados com o mundo pelos navios, almejavam os confortos de outras paragens, importando palavras, costumes, comportamentos.
No Ceará, a nova onda chegava com a velocidade das locomotivas. A exportação do algodão tinha ensejado, durante a década de 1860, a construção da estrada de ferro de Baturité. Com sua estação majestosa, a ferrovia transformava Fortaleza no centro nervoso do movimento das mercadorias e dinheiros da Província.
Depois do trem, os fortalezenses nunca mais seriam os mesmos. Dá para imaginar o estardalhaço que aquele exército de trabalhadores de trilhos causou na pacata rotina urbana. E como nomes são construtores de lugares, num gesto de criatividade, a Rua da Lagoinha, por onde passaram as primeiras composições, passou a se chamar a “Rua dos Trilhos” ou simplesmente, “Os Trilhos”. Quando a cidade mudou novamente, ela ganhou o nome do revolucionário da Confederação do Equador, Tristão Gonçalves.
Entre mercadores burgueses e uma aplicada equipe de administradores públicos, a cidade sentiu os efeitos da nova ética tanto no concreto de seus edifícios como nas vivências de seus habitantes. Partes da população foram afastadas, casebres demolidos, novos códigos de condutas e alternativas de lazer foram se formando. Ideais de ordem, higiene e lucro se inscreveram na paisagem urbana. Em 1875, o engenheiro Adolpho Hebster concluíra sua planta topográfica da cidade de Fortaleza e subúrbios, uma peça xadrez, revestida do sonho do embelezamento científico que sepultaria no passado as pequenas vielas desalinhadas de terra batida da cidade.
E vieram os bondes, em 1880. Rasgavam o chão com seus roteiros de ferro e materializavam uma verdadeira revolução da velocidade e da apropriação dos lugares da cidade.
Os trilhos de bondes serviram de inspiração para retratar, nesta exposição, a Fortaleza em transformação.
Primeiro eram bondes de burros e, depois de 1913, vieram os elétricos. Lembravam uma sanha construtora, que queria dominar tempos e espaços. Carregavam as modas dos personagens da cidade, políticos, empresários de sucesso, comerciantes e trabalhadores pobres, apartados nos bondes de primeira e segunda classe e na indumentária de linho. Às vezes alcançavam arrabaldes distantes, outrora inatingíveis para se morar.
Os bondes eram verdadeiros espaços nômades de convivência. Embalavam flertes, brigas, carnavais, disciplinavam corpos e gestos. E trouxeram operários urbanos, os primeiros a sacudirem a cidade com uma grande greve, em 1917, contra os patrões ingleses da Light and Power.
Qual o sentido de congelar os instantes dessa cidade em movimento? Talvez para lembrar que os ritmos da transformação são flutuantes… E para dizer também que são perenes, porque fazem parte da natureza do ser histórico que somos e que nos abandona numa solitária viagem entre os vivos.
Aqui estão imagens que captaram os trilhos de Fortaleza construídos entre 1880 e 1912, quando a viação urbana estava a cargo da Ferro Carril do Ceará, Ferro Carril de Porangaba e Ferro Carril do Outeiro. Da sucessora – Ceará Light and Power – sabe-se que pouco ampliou os percursos de bondes enquanto atuou no transporte público, até 1947. Aos ingleses, devemos mesmo a Usina de Força e Luz, um enorme monumento de alvenaria, com chaminés que pintavam o céu como um testemunho da cidade que ostentava sua energia elétrica.
Depois, estão as fotografias de 2010. Elas não servem para comparação, pois o passado, no seu inatingível, não se submete aos julgamentos do presente. Mas em 2010, elas servem, muito mais que as outras, para lembrar. Lembrar que transformações são inexoráveis, mas que somos nós que lhes damos a direção.